Matéria do site: Público
A primeira vez que Todd Gray fotografou Michael Jackson, em 1974, ele estava em estúdio com os restantes Jackson Five e com Stevie Wonder, atento às mãos do mestre que misturavam o som, isolado e pensativo. Usava calças que não lhe serviam, recorda Gray no livro de fotografia Michael Jackson, Before He Was King.
Em 1979, Gray via uma cena diferente: todos se afadigavam em torno de Michael, prestes a receber a platina por Off The Wall. Em palco, tudo brilhava. Ele ainda não era Rei, mas já sabia, como os Jackson Five, que as lantejoulas dos pés à cabeça tornariam indeléveis algumas imagens. Como as de uns pés impossivelmente verticais, com meias cravejadas de brilhantes.
"Se não me conseguem ver dançar, pra que é que estou aqui?", perguntava Michael, segundo conta o seu figurinista e amigo de décadas Michael Bush. "Ele queria que, ao fazer o Moonwalk em palco, de sapatos pretos, calças pretas, num fundo preto. As pessoas olhavam para os pés, porque antes de mais nada ele era um bailarino. Os olhos, com o branco e com o brilho, são obrigados a ir para lá, tal como as mãos - e daí a luva branca com brilhantes", explica Bush ao PÚBLICO, que acabou de lançar o livro de recordações, inéditos e esboços The King of Style: Dressing Michael Jackson.
"E o mesmo é válido para o comprimento das calças - quanto maior o estádio, mais curtas as calças. Às vezes ficavam cinco centímetros mais curtas."
Bush está a viajar pelos cafés Hard Rock do mundo (passará por Lisboa em 2013) para assinalar o lançamento, a 30 de Outubro, do livro. Ao telefone a partir de Londres, repete como se sente humilde perante a adoração por Michael Jackson e pelo seu quinhão na construção (sim, porque os ícones pop são como um edifício, construídos e alicerçados de forma meticulosa) da imagem e do ícone, que morreu a 25 de Junho de 2009.
Bush, que com o seu falecido companheiro Dennis Tompkins trabalhou alguns dos seus figurinos e roupas, não viveu os anos Jackson Five, pré-blusão Thriller, pré-dourados dos anos 1990, em que se foca o livro de Gray. Mas em Before He Was King já mora o vermelho do cabedal de Beat It (sintomaticamente, a última vez que Gray fotografou Jackson), já um ícone.
Porque o Rei do Pop "tentava mergulhar na psicologia dos fãs", lembra Bush, e é da vontade de cativar as mulheres que vem, por exemplo, o "visual do uniforme militar", cuja construção e modelagem "nos põe direitos, ajustados ao corpo, favorecendo-nos". E hoje, Beyoncé "aparece com um casaco Balmain de inspiração militar, e o designer perde um pouco o seu nome, porque as pessoas dizem é que ela usou um casaco Michael Jackson".
O músico "compreendia e estudava muito a psicologia e o cérebro humano, sabia que o vermelho dilata as pupilas e que o olho se lembra do vermelho", afirma Bush sobre os casacos de Michael. E ser lembrado, inesquecível, é o objetivo maior e a definição de um Ícone Pop.
Marcel Danesi, professor de Semiótica e Antropologia Linguística na Universidade de Toronto, qualifica Marilyn Monroe ou Elvis Presley como Ícones Pop. São exemplos fáceis, testados pelo tempo, com imagem, talento e culto a condizer. E, neste contexto, o autor de Popular Culture associa esta expressão de "ícone pop", uma celebridade que ganha um estatuto que atravessa toda uma cultura e tempo, aos ícones religiosos. "A devoção dos fãs é do tipo religioso", escreve sobre Elvis.
"A cultura de celebridades substituiu de muitas maneiras a cultura religiosa no mundo contemporâneo." "Todos temos deuses, como disse Martin Luther King, é tudo uma questão de quais" adoramos, diz o jornalista e crítico cultural Chris Hedges, citado por Danesi, sobre a sociedade americana em Empire of Illusions - The end of literacy and the triumph of spectacle.
Bastidores Bem Recheados
Michael Jackson era uma destas figuras, comunicado pelos media, "a igreja da cultura pop", segundo Danesi, tornado ícone por eles e pelos seus fiéis. Seguido por milhões, defendido por outros tantos, excêntrico e investigado e acusado por vários crimes envolvendo crianças na fase descendente da sua carreira, era também um talento, um músico e, acima de tudo, um bailarino, como Michael Bush não se cansa de frisar. E como não cabe apenas a media a geração de ícones, o sucesso de Jackson, mas também de Lady Gaga ou Katy Perry, exemplos atuais, depende de bastidores bem recheados. Stefani Germanotta, aliás Lady Gaga, leu vorazmente Warhol e teses sobre Warhol, definidor dos "15 minutos de fama" e eternizador de celebridades como arte. E aí começou o período em que "ela nunca está à paisana", como descreve Martin Kierszenbaum, da editora de Gaga, e em que os criadores de moda do mundo inteiro lhe enviam ideias e roupas.
O seu stylist, Nicola Formichetti, foi recentemente promovido a designer da influente e extrema marca francesa Thierry Mugler, uma das favoritas de Gaga. Roberto Cavalli, outro excessivo do sexy na moda, vestiu toda uma digressão de Christina Aguilera.
A imagem é tudo, e se Madonna também se eternizou com os seus cones cor-de-rosa desenhados por Jean Paul Gaultier, Bush e Tompkins costuraram o seu contributo para a eternidade com os anos passados com Michael Jackson, a vê-lo dançar "às vezes cinco ou sete horas por dia para ver, sentados a um canto, como é que o corpo dele reagia à música". E ele dizia-lhes, segundo o figurinista: "Eu danço o ritmo, o vosso trabalho é ajudar-me a mostrar o ritmo."
Esse trabalho começava sobretudo depois das gravações de um álbum e era uma troca em que os três desenhavam, de lápis e borracha nas mãos. "Era um contorno preliminar e, à medida que ia sendo feito, ele ia provando e compreendíamos melhor como ia funcionar na dança dele." Quando lhe perguntamos quais os ingredientes essenciais para a imagem de uma estrela pop, Bush nunca consegue descolar de Michael, apesar de ter trabalhado com outras estrelas, de Britney Spears (desenhou as roupas do vídeo Oops!... I did it again) a Elizabeth Taylor.
"No caso do Michael, era tudo pensado, havia um plano de ataque para abordar [cada visual]. Cada vez que o víamos [em público], ele vestia sempre algo diferente" e tinha a ambição de forçar os limites a cada imagem. A partir de certa altura, Michael rejeitou os quilos de revistas de moda que lhe levavam para se inspirar (e os criadores de moda inspiravam-se, e ainda se inspiram, nele), preferindo conhecer o pulsar da rua. Enviou Bush e Tompkins para as discotecas e ruas de Amesterdã, de Paris, Londres, onde perguntavam às pessoas o que as inspirava para se vestirem. "Chegavam a responder-nos que estavam à espera de saber o que o Michael Jackson ia usar."
Os media, bebiam cada aparição pública de Michael e "mesmo quando a imprensa o atacava por algo que usava, ele ficava fascinado, porque as pessoas prestavam atenção". A imagem dele dizia tudo: "O Michael percebia que toda a gente quer ver um espectáculo." Bush contextualiza o trabalho com Michael numa era de editoras discográficas mais endinheiradas, com equipas e verbas para criar uma imagem, um pacote. "Para captar a atenção das pessoas, é preciso chocá-las, mas se não houver algo mais, elas vão à procura do próximo que os choque. Lady Gaga ou Katy Perry são hoje mestras desse valor do choque, porque tem algo por trás, um talento", opina Bush.
Como amigo e profissional cuja carreira deve muito a Michael Jackson, Bush considera que "haverá outros performers que serão tão divertidos como Michael, mas ele não aprendeu a fazer o que fazia - simplesmente saía dele, foi um dom de Deus". Sobre a atual fábrica de ídolos e a sua busca de imagens fortes, Michael Bush percebe, mas preocupa-se com os reality shows em que os concorrentes "estão muito ocupados a tentar aprender a cantar, a tentar tornar-se estrelas pop, mas ainda não têm a sua própria música, o seu próprio estilo", nem verbas para ter "stylists ou designers a ajudá-los a encontrar o seu nicho, a definir o caminho da sua imagem". Numa visão típica da pop, auto-centrada, Bush postula sobre ídolos e ícones: "A indústria musical é 50% imagem, 50% voz. E se não se tem uma dessas coisas, tendem a perder-se".